domingo, 29 de janeiro de 2012

SP-160


São Paulo, 8h da manhã. A Avenida 23 de Maio e Marginais Pinheiro e Tietê já estão congestionadas.  A maioria das crianças está na escola, seus pais já chegaram aos escritórios e as principais manchetes do dia já foram lidas. A falida polícia continuará na “cracolândia”, o FMI precisa de um fundo de 500 bilhões para socorrer a crise europeia e a perícia ainda investiga o naufrágio do cruzeiro na costa italiana. A esta altura os pregões da Bovespa e da Nasdaq já estão abertos. Tensão no mundo árabe aumenta o preço do petróleo.  Malabaristas já começaram o expediente nos faróis da Faria Lima e Avenida Paulista.

Nesse meio tempo,  um homem perdido na multidão em busca da posse da sua individualidade, à la Baudelaire, deixa sua casa. Sozinho, mesmo que rodeado por uma barulhenta cidade com 17 milhões de habitantes. Olha de vez em quando jornais atirados ao chão. Não que ele se interesse pelas notícias. Mais importante é o cabeçalho com a data do ano. Contra a corrente dos 7 milhões de carro da frota paulistana ele vai a pé. Da rua Vapabuçu, sentido avenida dos Bandeirantes rumo à Imigrantes, ele cruza religiosamente todos os dias a Serra do Mar. Apesar do fluxo de veículos, o ar parece mais puro e a natureza mais viva. Todos os dias, ida e volta ao longo de muitos anos.  O tempo que ele demora para ir e voltar é suficiente para que milhares de executivos cheguem de ponte aérea ao Rio de Janeiro, compareçam a suas reuniões e voltem para seus escritórios na capital paulista.

Quando os bancários já assumiram seus caixas, os executivos suas mesas e os médicos deixaram os plantões, ele sai no seu mundo paralelo em busca de um sentido para aquilo tudo. Comia o que a natureza local tinha a oferecer. Não era lá muita coisa. O sol às vezes castigava, queimava, ardia. Nem sempre havia água. Mas ele seguia como se aquela caminhada fosse uma superação daquele cotidiano frenético, o qual ele tentava evitar. Uma afirmação desesperada em nome de uma liberdade fictícia. Observava o ecossistema e suas duras regras. Deixava sua casa sem água, sem comida, sem mochila, sem protetor solar. A única coisa que levava consigo, às vezes, eram sacos plásticos de lixo. Os animais mortos, atropelados pelos carros em alta velocidade, atirados no meio da pista, mexiam com ele. Era impossível dar um descanso decente para cada um deles. Seria como remar contra a maré. Todos os dias, algum bichinho perdia a vida ali, na dura realidade da pista de concreto, na radicalização da vida urbana. Então, ele os cobria com um saco plástico para preservar a dignidade daqueles corpos já sem vida. Um ato de piedade, bom senso ou até mesmo loucura para muitos.

Um dia, às 21h15 de 19 de janeiro, chegou sua vez. Era o risco que corria por atrapalhar o fluxo da vida e o cotidiano de todos aqueles veículos. Não precisou ser coberto por um plástico para ser protegido do descaso do mundo. Foi resgatado, mesmo que depois de alguns minutos sob a forte chuva de verão. A realidade ficava cada vez menos peculiar. A vida era incerta, as idéias confusas. As lembranças pararam no tempo. Mas mesmo assim o pregão das bolsas de valores abriu pontualmente no dia seguinte como se nada além do usual tivesse se passado na rodovia SP-160.