Dublin – Diversão em meio a cervejas e livros
(Texto originalmente publicado na revista Viaje Mais! Fev. 2013)
Terra da Guinness e de escritores da estirpe de James Joyce e Oscar Wilde, a capital irlandesa é um convite à cultura e à boemia, elevadas à máxima potência durante o St. Patrick´s Festival.
Por Regina Cazzamatta
(Texto originalmente publicado na revista Viaje Mais! Fev. 2013)
Terra da Guinness e de escritores da estirpe de James Joyce e Oscar Wilde, a capital irlandesa é um convite à cultura e à boemia, elevadas à máxima potência durante o St. Patrick´s Festival.
Por Regina Cazzamatta
Você pode nunca ter pensado em
viajar para a capital irlandesa, Dublin. Mas se já tiver cantado e dançado à
exaustão ao som do U2, ido a um pub para tomar uma pint de Guinness e lido os clássicos como O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou mesmo Drácula, de Bram Stocker, então já está
íntimo de algumas especialidades da inebriante cidade: musica, literatura e
cerveja da melhor qualidade.
É muita tradição cultural e etílica,
associada a uma trajetória de quase dois mil anos desde sua fundação, que legou
Dublin a uma série de construções dos mais variados períodos. Mas se tudo isso
não fez seu coração palpitar a ponto de convencê-lo a colocar os pés lá, talvez
a celebração do St. Patrick´s Festival o faça mudar de ideia.
Realizada todos os anos em março –
normalmente entre os dias 14 e 18, como será em 2013 – a festa tem seu ponto
alto no dia 17, feriado nacional em homenagem à possível data de morte de St.
Patrick (ou São Patrício em português), padroeiro da Irlanda e grande símbolo
nacional. O evento tem desfiles de artistas, dançarinos e grupos de músicos que
sai da Praça Parnell, na O`Connell Street. Segue margeando pontos turísticos, como a Trinity College,
universidade fundada em 1592 e dona de uma biblioteca de obras raras, e o
Castelo de Dublin, cartão-postal local.
No percurso de 2,5 KUM, embalado
pelo som da gaita de frole irlandesa, pelo menos 500 mil pessoas, entre
moradores e visitantes, assistem ao corso ou o acompanham. Boa parte usa
chapelões e roupas verdes (muitas são uma alusão aos leprechauns, duendes de barbas e cabelos vermelhos que fazem parte
da lenda do país). E estar em Dublin na época do St. Patricks Festival tem
outra vantagem: março é um dos
meses mais secos do ano, já que na capital irlandesa o clima é bastante inconsistente
(chove tanto quanto em Londres).
Festejar em meio à muvuca faz parte
do espírito do St. Patrick´s Day, mas para curtir o evento sem tanta agitação o
ideal é procurar os pub mais
afastados, fora do centro. Esses bares são uma instituição tão enraizada e
respeitada que, só em Dublin (com uma população de 500 mil habitantes) há cerca
de mil deles. Revestidos por carpetes, móveis de madeira, grandes sofás e
lareiras e normalmente rústicos, os pubs têm
como toque de modernidade a presença de muitas TVs.
Assim, enquanto as pints (copo de 568 ml), sobretudo de
Guinness, se esvaziam nas mesas, alguns assistem à disputa de esportes típicos
de lá, como o hurling, jogado com
taco de madeira é uma espécie de mistura de futebol americano e hóquei sobre
grama, e o futebol gaélico, em que vale até pegar a bola com a mão.
Mas antes que se possa levar a
caneca de cerveja à boca, o atendente do pub ou um freguês irlandês qualquer
pode exclamar “ainda não”, já que a Guinness precisa de um tempinho para estar
totalmente assentada e apresentar seu real sabor. E é aí que se percebe que há
um ritual para a degustação de uma legítima stout,
gênero a que pertence a famosa cerveja. Ela tem gosto forte, pois o malte é
tostado – daí a coloração escura – e o teor alcoólico fica entre 7% e 8%, quase
o dobro de uma cerveja pilsen
brasileira.
Possivelmente em nenhum outro lugar
do mundo uma marca de cerveja (caso da Guinness, produzida desde 1759)
representa tanto a identidade nacional – para citar uma mera comparação, o
desenho de uma harpa está tanto no brasão de armas da Irlanda como no rótulo da
bebida.
Quem quer saber mais sobre esse
ícone irlandês pode visitar a Guinness
Storehouse, construída em 1904 e na ativa até hoje – diariamente sai e lá
cerveja para abastecer 3 milhões de pints,
nos mercados nacional e internacional. Alem da fábrica, o complexo tem uma área
dedicada aos visitantes. Nela, é contada a história da bebida, e é detalhada
uma série de momentos da produação e armazenamento.Durante o tour, pode-se ver rótulos, propagandas e
outros matérias que mostram a “cara” da Guinness ao longo dos anos. Também se
aprende que, ao contrario do que é dito popularmente, a água usada para fazer a
cerveja não vem do Rio Leffey, que corta Dublin, mas da Montanha Wicklow, nos
arredores da capital.
Um dos espaços mais concorridos é a
Guinness Academy, no qual turistas aprendem a tirar uma pint perfeita. Quem não fizer o “treinamento” pode usar o ingresso
para provar a bebida no Bar Gravity, o pub
mais alto da cidade, a 44 metros de altura e com uma bela vista de Dublin. Lá,
os barmans, além de tirarem bebida
nos rígidos padrões de qualidade, ainda fazem aparecer o trevo da sorte, outro
símbolo do país, junto à espuma.
Entra e Sai de Pubs
Para seguir bebendo Guinness e outras cervejas irlandesas, o
endereço mais conhecido é o bairro do Temple Bar, repleto de bares, cafés, restaurantes,
lojas vintage, livrarias, sebos e
galerias repaginadas nos anos de 1990. Também é popular o mercado de comida do
bairro, que, realizado aos sábados, oferece uma vasta opção de iguarias prontas
para ser saboreadas.
Boêmia por natureza, o que lhe
rendeu o apelido de Temple Barf (barf é vômito em inglês), a região concentra
os pubs mais famosos da capital. É o caso da construção vermelha que nomeia o
bairro, certamente um dos locais mais fotografados e estampados em cartões
postais. Por isso, não espere encontrar preços modestos por lá. Ao lado, o
Oliver St. John Gogarty pode até não ser muito freqüentado pelos nativos, pois
não é originalmente rústico nem antigo (mas é bem planejado para parecer como
tal).
Ainda assim, o movimento da casa é grande graças às apresentações de boa
musica irlandesa (a partir das 14h). Das 23h às 23h30, há shows de dança
típica, quando a musica é interrompida para que um casal sapateie no tablado de
madeira. O pequeno espetáculo mostra a arte como ela é praticada nas cidades do
interior e escolas do país antes de passar pelos filtros da Broadway. Está
longe de ser uma produção do grupo Riverdance, que tornou a dança irlandesa um
fenômeno mundial, mas vale a pena.
Cerveja e Literatura
Ainda no Temple Bar, a Porter House Brewing Company, decorada com
rótulos e garrafas de diversos estilos e anos, produz uma série de cervejas.
Além de saborear os tipos ale (mais
avermelhada), Porter (um pouco mais
fraca que a stoutI) e outros gêneros,
é possível levá-las para casa. Outra boa pedida é o tradicional e pitoresco pub Stag´s Head, na região da Merrion
Square, freqüentado por estudantes da Trinity College. A casa de 1770 foi repaginada
em 1895 (e permanece do mesmo jeito desde então). Beber ali ganha um clima
especial quando se imagina estar na mesma poltrona ou sofá usados um dia por
James Joyce (1882-1941), grande expoente da literatura irlandesa e autor de
clássicos como Ulisses e Dublinenses.
Mas não
foi só o Stag´s Head que, com uma “ajuda” de Joyce, ficou famoso: diversos
pontos de Dublin ganharam atenção especial daqueles que leram os relatos do
escritor ou que pelo menos sabem que ele retratou Dublin muito bem. Nas
palavras de Joyce, se a cidade fosse banida do mapa, seria possível
reconstruí-la por meio de Ulisses. Assim, o Temple Bar, o Castelo de Dublin, a
Grafton Street e vários outros lugares não estão apenas registrados na grande
obra literária, mas de fato existem e encantam quem passeia pela chuvosa cidade. Prova disso são as
celebrações no dia 16 de junho, o Bloom´s Day (uma referencia a Leopold Bloom,
protagonista de Ulisses), espécie de St. Patrick´s Day para os aficionados por
literatura em geral.
Dublin,
classificada pela Unesco como a cidade da literatura, também é o berço de uma
lista invejável de escritores contemplados com prêmios Nobel – George Bernard
Shaw, William Butler Yeats, Samuel Beckett e Seamus Heaney-, sem contar com
Bram Stocker, criador da mais famosa história de vampiro, e o polêmico Oscar
Wilde. As casas dos dois últimos ainda existem: ficam na Kildare Street 36 e na
Merion Square North 1, respectivamente (são indicadas com placas). A região da
Merrion Square conta ainda com belas construções da era georgiana museus, a exemplo dos de Arqueologia,
de História Natural e da National Gallery. Mas é mesmo a estátua de Oscar
Wilde, uma escultura colorida bem em frente à casa do autor, retratando-o com
uma leve cara de deboche, tão típica de seus personagens, que recebe mais
atenção dos turistas.
Biblioteca Jedi
Em uma cidade que respira literatura, uma visita obrigatória é a
biblioteca da antiga Trinity College, a universidade de maior prestígio do
país, que guarda o Livro de Kells. Todos os anos, 500 mil pessoas encaram uma
senhora fila para ver o manuscrito do ano 800 produzido por monges celtas do
Mosteiro St. Colmcille, na Escócia. A obra contem os quatro Evangelhos do Novo
Testamento escritos em latim e ilustrados artisticamente à mão, relíquia que, na
Idade Media, passou por um jogo de rouba e esconde até ser entregue aos
cuidados da universidade de 1661.
Outra
atração de peso é a Long Room, sala de 65 metros de comprimento onde estão os
200 mil livros mais antigos da Trinity College. Mesmo quem nunca pisou nessa
área pode ter a sensação de já tê-la visto. “O cineasta George Lucas fez uma
foto da biblioteca e a usou em Star Wars”, explica um dos guardas da sala. A
partir daí, o espço é lembrado como a biblioteca dos Jedis (personagens da saga
Guerra nas EstrelasI). Na biblioteca há ainda uma das poucas
cópias da proclamação de independência da Irlanda, de 1916, lida pelo escritoe
e ativista político Patrick Pearse no começo do levante. O movimento foi
reprimido por tropas britânicas, adiando por décadas a separação entre o que
hoje são a República da Irlanda (ou Eire, em irlandês) e a Irlanda do Norte
(parte do Reino Unido), o que
ocorreu em 1949.
Aproveite
a visita e faça também o tour de meia hora guiado pelos estudantes da Trinity,
que explicam a função de cada prédio, os rituais universitários e, claro, citam
os figurões que lá se graduaram, como os escritores Oscar Wilde, Samuel Beckett
e Jonathan Swift.
A Misteriosa Molly
Malone
O maior burburinho da cidade é ali perto, na Grafton Steert, rua
exclusiva aos pedestres reconhecida pelo piso avermelhado e pelos prédios de
estilo georgiano – como a loja de departamentos Brown Thomas. Quando os
dublinenses dizem que vão ao “centro”, se referem a esse bulevar, que combina
belas e tentadoras vitrines com apresentações de músicos.
No início
da rua, destaca-se uma estátua de ferro dedicada a Molly Malone. Mais uma
escultura icônica da cidade, ninguém sabe se a moça realmente existiu. Ainda
assim, a personagem faz parte do imaginário irlandês, e não há criança por ali
que não saiba cantar os versos : “In
Dublin fair city/where the girls are so pretty/I firt set my eyes/on sweet
Molly Malone” (Na atrativa Dublin/onde as garotas são tão bonitas/a
primeira coisa que vi/ foi a Molly Malone).
Conta a
lenda que a formosa menina vendia peixes e mexilhões num período em que a fome
assolou o país, por causa de uma praga que devastou as plantações de batata,
catástrofe que realmente ocorreu – só em 1847, morreram cerca de 1 milhão de
pessoas por desnutrição. Nesse cenário, o destino da garota foi trágico:
segundo a canção, ela morreu de febre antes que alguém pudesse salvá-la.
Enquanto
a estátua de Molly serve de pit stop
para os visitantes no início da Grafton Steert, o parque Stephen´s Green
oferecer momentos de descanso no fim da rua. Se o tempo ajudar, será possível
observar os moradores relaxando ali, aproveitando os aguardados raios de sol.
Ao caminhar pelo agradável parque, mal dá para imaginar que, durante a Idade
Média, ele servia de palco para as execuções por enforcamento ou fogueira.
Castelo e Catedral
E já que a época medieval foi
evocada, para explorar o que restou desse período as melhores paradas são o
castelo que tem o nome da cidade, a Igreja de St. Patrick e a fotogênica e
icônica catedral, erguida a partir de 1030. E para degustar uma cerveja num pub
que remonta a essa antiguidade toda, passe no Brazen Head, um dos mais antigos
de Dublin, datado de 1198 e cujas prateleiras estão cheia de livros – para não
desperdiçar tal acervo, a casa promove saraus de leitura de textos clássicos.
Embora seja um pouco afastado do
centro, o Brazen Head é próximo ao Rio Lyffey, com acesso pela Lower Bridge.
Tanto quanto para beber uma stout,
uma boa ideia é tomar ali um típico café da manhã irlandês, à base de salsicha,
ovos, bacon, tomate e feijão com molho de tomate adocicado, e então explorar o
pedaço. É uma boa oportunidade de conhecer as pontes que cruzam o rio – a
Ha´penny Bridge, toda branca com candelabros, é uma das mais bonitas. Outra
opção para aproveitar as águas e a brisa do Liffey é um passeio de barco rumo
às docas. Por lá, projetos arquitetônicos moderníssimos, dos anos de 1990,
fizeram da região um belo espaço à beira-rio, com prédios de vidro e fachadas
inovadoras. Um ponto alto é a Samuel Beckett Bridge, do arquiteto catalão
Santiago Calatrava, também branca e em forma de harpa, o símbolo nacional.
Para materializar um pouco tudo o
que foi visto em Dublin, a Carrolls Irish Gift Store, cuja principal unidade
fica ao sul da O´Connell Bridge, será um pit stop e tanto. O espaço oferece
todo tipo de lembrança, entre produtos oficiais da Guinness, CDs de musica
irlandesa, bijoux com motivos celtas,
símbolos da sorte, como trevos verdes e miniatures de leprechauns, guloseimas....
Ao fim da estada, especialmente para
quem conseguir vivenciar as festividades em torno do St. Patrick, o dia 17 de
março nunca mais será igual – ainda que sua cidade de origem tenha pubs animados e até organize uma festa
no St.Patrick´s Day. E se a Guinness terá o mesmo sabor depois da viagem, é
difícil dizer. Os ingredientes da cerveja servida no Brasil serão os mesmos,
mas o cuidadoso ritual para tirá-la à perfeição, no clima e na tradição como os
irlandeses apreciam, só em Dublin mesmo.
Informações Gerais