terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Irlanda, Dublin: um roteiro pela capital irlandesa


 Dublin – Diversão em meio a cervejas e livros
(Texto originalmente publicado na revista Viaje Mais! Fev. 2013)

Terra da Guinness e de escritores da estirpe de James Joyce e Oscar Wilde, a capital irlandesa é um convite à cultura e à boemia, elevadas à máxima potência durante o St. Patrick´s Festival.

Por Regina Cazzamatta

Você pode nunca ter pensado em viajar para a capital irlandesa, Dublin. Mas se já tiver cantado e dançado à exaustão ao som do U2, ido a um pub para tomar uma pint de Guinness e lido os clássicos como O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou mesmo Drácula, de Bram Stocker, então já está íntimo de algumas especialidades da inebriante cidade: musica, literatura e cerveja da melhor qualidade.
É muita tradição cultural e etílica, associada a uma trajetória de quase dois mil anos desde sua fundação, que legou Dublin a uma série de construções dos mais variados períodos. Mas se tudo isso não fez seu coração palpitar a ponto de convencê-lo a colocar os pés lá, talvez a celebração do St. Patrick´s Festival o faça mudar de ideia.
Realizada todos os anos em março – normalmente entre os dias 14 e 18, como será em 2013 – a festa tem seu ponto alto no dia 17, feriado nacional em homenagem à possível data de morte de St. Patrick (ou São Patrício em português), padroeiro da Irlanda e grande símbolo nacional. O evento tem desfiles de artistas, dançarinos e grupos de músicos que sai da Praça Parnell, na O`Connell Street. Segue  margeando pontos turísticos, como a Trinity College, universidade fundada em 1592 e dona de uma biblioteca de obras raras, e o Castelo de Dublin, cartão-postal local.
No percurso de 2,5 KUM, embalado pelo som da gaita de frole irlandesa, pelo menos 500 mil pessoas, entre moradores e visitantes, assistem ao corso ou o acompanham. Boa parte usa chapelões e roupas verdes (muitas são uma alusão aos leprechauns, duendes de barbas e cabelos vermelhos que fazem parte da lenda do país). E estar em Dublin na época do St. Patricks Festival tem outra vantagem:  março é um dos meses mais secos do ano, já que na capital irlandesa o clima é bastante inconsistente (chove tanto quanto em Londres).
Festejar em meio à muvuca faz parte do espírito do St. Patrick´s Day, mas para curtir o evento sem tanta agitação o ideal é procurar os pub mais afastados, fora do centro. Esses bares são uma instituição tão enraizada e respeitada que, só em Dublin (com uma população de 500 mil habitantes) há cerca de mil deles. Revestidos por carpetes, móveis de madeira, grandes sofás e lareiras e normalmente rústicos, os pubs têm como toque de modernidade a presença de muitas TVs.
Assim, enquanto as pints (copo de 568 ml), sobretudo de Guinness, se esvaziam nas mesas, alguns assistem à disputa de esportes típicos de lá, como o hurling, jogado com taco de madeira é uma espécie de mistura de futebol americano e hóquei sobre grama, e o futebol gaélico, em que vale até pegar a bola com a mão.
Mas antes que se possa levar a caneca de cerveja à boca, o atendente do pub ou um freguês irlandês qualquer pode exclamar “ainda não”, já que a Guinness precisa de um tempinho para estar totalmente assentada e apresentar seu real sabor. E é aí que se percebe que há um ritual para a degustação de uma legítima stout, gênero a que pertence a famosa cerveja. Ela tem gosto forte, pois o malte é tostado – daí a coloração escura – e o teor alcoólico fica entre 7% e 8%, quase o dobro de uma cerveja pilsen brasileira.
Possivelmente em nenhum outro lugar do mundo uma marca de cerveja (caso da Guinness, produzida desde 1759) representa tanto a identidade nacional – para citar uma mera comparação, o desenho de uma harpa está tanto no brasão de armas da Irlanda como no rótulo da bebida.
Quem quer saber mais sobre esse ícone irlandês pode visitar a Guinness Storehouse, construída em 1904 e na ativa até hoje – diariamente sai e lá cerveja para abastecer 3 milhões de pints, nos mercados nacional e internacional. Alem da fábrica, o complexo tem uma área dedicada aos visitantes. Nela, é contada a história da bebida, e é detalhada uma série de momentos da produação e armazenamento.Durante o tour, pode-se ver rótulos, propagandas e outros matérias que mostram a “cara” da Guinness ao longo dos anos. Também se aprende que, ao contrario do que é dito popularmente, a água usada para fazer a cerveja não vem do Rio Leffey, que corta Dublin, mas da Montanha Wicklow, nos arredores da capital.
Um dos espaços mais concorridos é a Guinness Academy, no qual turistas aprendem a tirar uma pint perfeita. Quem não fizer o “treinamento” pode usar o ingresso para provar a bebida no Bar Gravity, o pub mais alto da cidade, a 44 metros de altura e com uma bela vista de Dublin. Lá, os barmans, além de tirarem bebida nos rígidos padrões de qualidade, ainda fazem aparecer o trevo da sorte, outro símbolo do país, junto à espuma.

Entra e Sai de Pubs
                     Para seguir bebendo Guinness e outras cervejas irlandesas, o endereço mais conhecido é o bairro do Temple Bar, repleto de bares, cafés, restaurantes, lojas vintage, livrarias, sebos e galerias repaginadas nos anos de 1990. Também é popular o mercado de comida do bairro, que, realizado aos sábados, oferece uma vasta opção de iguarias prontas para ser saboreadas.


Boêmia por natureza, o que lhe rendeu o apelido de Temple Barf (barf é vômito em inglês), a região concentra os pubs mais famosos da capital. É o caso da construção vermelha que nomeia o bairro, certamente um dos locais mais fotografados e estampados em cartões postais. Por isso, não espere encontrar preços modestos por lá. Ao lado, o Oliver St. John Gogarty pode até não ser muito freqüentado pelos nativos, pois não é originalmente rústico nem antigo (mas é bem planejado para parecer como tal). 


Ainda assim, o movimento da casa é grande graças às apresentações de boa musica irlandesa (a partir das 14h). Das 23h às 23h30, há shows de dança típica, quando a musica é interrompida para que um casal sapateie no tablado de madeira. O pequeno espetáculo mostra a arte como ela é praticada nas cidades do interior e escolas do país antes de passar pelos filtros da Broadway. Está longe de ser uma produção do grupo Riverdance, que tornou a dança irlandesa um fenômeno mundial, mas vale a pena.

Cerveja e Literatura
                Ainda no Temple Bar, a Porter House Brewing Company, decorada com rótulos e garrafas de diversos estilos e anos, produz uma série de cervejas. Além de saborear os tipos ale (mais avermelhada), Porter (um pouco mais fraca que a stoutI) e outros gêneros, é possível levá-las para casa. Outra boa pedida é o tradicional e pitoresco pub Stag´s Head, na região da Merrion Square, freqüentado por estudantes da Trinity College. A casa de 1770 foi repaginada em 1895 (e permanece do mesmo jeito desde então). Beber ali ganha um clima especial quando se imagina estar na mesma poltrona ou sofá usados um dia por James Joyce (1882-1941), grande expoente da literatura irlandesa e autor de clássicos como Ulisses e Dublinenses.
                      Mas não foi só o Stag´s Head que, com uma “ajuda” de Joyce, ficou famoso: diversos pontos de Dublin ganharam atenção especial daqueles que leram os relatos do escritor ou que pelo menos sabem que ele retratou Dublin muito bem. Nas palavras de Joyce, se a cidade fosse banida do mapa, seria possível reconstruí-la por meio de Ulisses. Assim, o Temple Bar, o Castelo de Dublin, a Grafton Street e vários outros lugares não estão apenas registrados na grande obra literária, mas de fato existem e encantam quem passeia  pela chuvosa cidade. Prova disso são as celebrações no dia 16 de junho, o Bloom´s Day (uma referencia a Leopold Bloom, protagonista de Ulisses), espécie de St. Patrick´s Day para os aficionados por literatura em geral.
Dublin, classificada pela Unesco como a cidade da literatura, também é o berço de uma lista invejável de escritores contemplados com prêmios Nobel – George Bernard Shaw, William Butler Yeats, Samuel Beckett e Seamus Heaney-, sem contar com Bram Stocker, criador da mais famosa história de vampiro, e o polêmico Oscar Wilde. As casas dos dois últimos ainda existem: ficam na Kildare Street 36 e na Merion Square North 1, respectivamente (são indicadas com placas). A região da Merrion Square conta ainda com belas construções da era georgiana  museus, a exemplo dos de Arqueologia, de História Natural e da National Gallery. Mas é mesmo a estátua de Oscar Wilde, uma escultura colorida bem em frente à casa do autor, retratando-o com uma leve cara de deboche, tão típica de seus personagens, que recebe mais atenção dos turistas.

Biblioteca Jedi
                Em uma cidade que respira literatura, uma visita obrigatória é a biblioteca da antiga Trinity College, a universidade de maior prestígio do país, que guarda o Livro de Kells. Todos os anos, 500 mil pessoas encaram uma senhora fila para ver o manuscrito do ano 800 produzido por monges celtas do Mosteiro St. Colmcille, na Escócia. A obra contem os quatro Evangelhos do Novo Testamento escritos em latim e ilustrados artisticamente à mão, relíquia que, na Idade Media, passou por um jogo de rouba e esconde até ser entregue aos cuidados da universidade de 1661.

                Outra atração de peso é a Long Room, sala de 65 metros de comprimento onde estão os 200 mil livros mais antigos da Trinity College. Mesmo quem nunca pisou nessa área pode ter a sensação de já tê-la visto. “O cineasta George Lucas fez uma foto da biblioteca e a usou em Star Wars”, explica um dos guardas da sala. A partir daí, o espço é lembrado como a biblioteca dos Jedis (personagens da saga Guerra nas EstrelasI).  Na biblioteca há ainda uma das poucas cópias da proclamação de independência da Irlanda, de 1916, lida pelo escritoe e ativista político Patrick Pearse no começo do levante. O movimento foi reprimido por tropas britânicas, adiando por décadas a separação entre o que hoje são a República da Irlanda (ou Eire, em irlandês) e a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido),  o que ocorreu em 1949.
Aproveite a visita e faça também o tour de meia hora guiado pelos estudantes da Trinity, que explicam a função de cada prédio, os rituais universitários e, claro, citam os figurões que lá se graduaram, como os escritores Oscar Wilde, Samuel Beckett e Jonathan Swift.

A Misteriosa Molly Malone

             O maior burburinho da cidade é ali perto, na Grafton Steert, rua exclusiva aos pedestres reconhecida pelo piso avermelhado e pelos prédios de estilo georgiano – como a loja de departamentos Brown Thomas. Quando os dublinenses dizem que vão ao “centro”, se referem a esse bulevar, que combina belas e tentadoras vitrines com apresentações de músicos.
No início da rua, destaca-se uma estátua de ferro dedicada a Molly Malone. Mais uma escultura icônica da cidade, ninguém sabe se a moça realmente existiu. Ainda assim, a personagem faz parte do imaginário irlandês, e não há criança por ali que não saiba cantar os versos : “In Dublin fair city/where the girls are so pretty/I firt set my eyes/on sweet Molly Malone” (Na atrativa Dublin/onde as garotas são tão bonitas/a primeira coisa que vi/ foi a Molly Malone).
                  Conta a lenda que a formosa menina vendia peixes e mexilhões num período em que a fome assolou o país, por causa de uma praga que devastou as plantações de batata, catástrofe que realmente ocorreu – só em 1847, morreram cerca de 1 milhão de pessoas por desnutrição. Nesse cenário, o destino da garota foi trágico: segundo a canção, ela morreu de febre antes que alguém pudesse salvá-la.
Enquanto a estátua de Molly serve de pit stop para os visitantes no início da Grafton Steert, o parque Stephen´s Green oferecer momentos de descanso no fim da rua. Se o tempo ajudar, será possível observar os moradores relaxando ali, aproveitando os aguardados raios de sol. Ao caminhar pelo agradável parque, mal dá para imaginar que, durante a Idade Média, ele servia de palco para as execuções por enforcamento ou fogueira. 
Castelo e Catedral
E já que a época medieval foi evocada, para explorar o que restou desse período as melhores paradas são o castelo que tem o nome da cidade, a Igreja de St. Patrick e a fotogênica e icônica catedral, erguida a partir de 1030. E para degustar uma cerveja num pub que remonta a essa antiguidade toda, passe no Brazen Head, um dos mais antigos de Dublin, datado de 1198 e cujas prateleiras estão cheia de livros – para não desperdiçar tal acervo, a casa promove saraus de leitura de textos clássicos.
Embora seja um pouco afastado do centro, o Brazen Head é próximo ao Rio Lyffey, com acesso pela Lower Bridge. Tanto quanto para beber uma stout, uma boa ideia é tomar ali um típico café da manhã irlandês, à base de salsicha, ovos, bacon, tomate e feijão com molho de tomate adocicado, e então explorar o pedaço. É uma boa oportunidade de conhecer as pontes que cruzam o rio – a Ha´penny Bridge, toda branca com candelabros, é uma das mais bonitas. Outra opção para aproveitar as águas e a brisa do Liffey é um passeio de barco rumo às docas. Por lá, projetos arquitetônicos moderníssimos, dos anos de 1990, fizeram da região um belo espaço à beira-rio, com prédios de vidro e fachadas inovadoras. Um ponto alto é a Samuel Beckett Bridge, do arquiteto catalão Santiago Calatrava, também branca e em forma de harpa, o símbolo nacional.
Para materializar um pouco tudo o que foi visto em Dublin, a Carrolls Irish Gift Store, cuja principal unidade fica ao sul da O´Connell Bridge, será um pit stop e tanto. O espaço oferece todo tipo de lembrança, entre produtos oficiais da Guinness, CDs de musica irlandesa, bijoux com motivos celtas, símbolos da sorte, como trevos verdes e miniatures de leprechauns, guloseimas....
Ao fim da estada, especialmente para quem conseguir vivenciar as festividades em torno do St. Patrick, o dia 17 de março nunca mais será igual – ainda que sua cidade de origem tenha pubs animados e até organize uma festa no St.Patrick´s Day. E se a Guinness terá o mesmo sabor depois da viagem, é difícil dizer. Os ingredientes da cerveja servida no Brasil serão os mesmos, mas o cuidadoso ritual para tirá-la à perfeição, no clima e na tradição como os irlandeses apreciam, só em Dublin mesmo.

Informações Gerais

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Uma imagem real


Uma certa manhã ela acordou com 70 anos.  A pele não era mais assim tão rígida, os cabelos encurtaram e a textura das mãos denunciavam o que ela tentara esconder ao longo da vida por meio dos artefatos da vaidade feminina. Como passara rápido! Já vi muitos ficarem velhos e manterem o espírito jovem. Mas esta moça manteve a carcaça jovem e a alma envelhecida. Cansaço, fadiga! A vida não tinha sido fácil, nem valia a pena narrar os percalços das mulheres daquele tempo. Estava prestes a morrer afogada na luta contra o inevitável. As sobrancelhas eram marcadas por uma maquiagem definitiva que lhe dava um ar mutante, quase artificial. O batom vermelho, levemente borrado, já não ressaltava a beleza, mas revelava o aspecto histérico, alheio ao mundo e à realidade. Aquele olhar poderia ter inspirado Munch a pintar o Grito. Para ela não seria um problema, desde que se tornasse uma musa.