segunda-feira, 6 de julho de 2015

Gilberto Gil, Caetano Veloso e o surto expatriado

        Em uma visita à São Paulo, perguntaram-me certa vez o que eu mais sentia falta do Brasil depois de alguns anos fora de casa. Pensei, torci o nariz e respondi: “a música”. Meu interlocutor me olhou extremamente desapontado, como se esperasse uma resposta como a família, os amigos, o calor do nosso povo, as belas praias, a garota de Ipanema ou sei lá qual pataquada do gênero. Não que eu não sinta saudade das pessoas, mas em tempos de internet a comunicação anda bem mais fácil (para não falar até invasiva).  Mas enfim... Fato é que ninguém compartilha comigo aqui, mesmo conhecendo e gostando de música brasileira, a carga cultural, histórica e até mesmo emocional de cantar “alguma coisa acontece no meu coração”.... ou “começou a circular o expresso 2222”....

A não ser quando Gil e Caetano resolvem fazer uma turnê dos cinquenta anos de carreira pela Europa, dominada, claro!, pelo público brasileiro. E eu que há muito tempo na Alemanha tinha me esquecido do nosso molejo, comecei a estranhar o vaivém de pessoas buscando cerveja ao longo do show, gritando “lindoooooossss” em cima da voz dos mestres ou puxando uma cantoria que virou um baita de um karaokê coletivo de expatriados. O show foi em Londres, mas fiquei pensando se algum alemão, com a reverência e respeito pela música clássica, entenderia o que se passava por ali. Uma digressão rápida. Uma vez em Berlim, durante um show de rock (do Mumford & Sons), nas arquibancadas de um estádio, uma mulher me cutuca e pede para eu me sentar, pois ela não conseguia ver o show direito!!!! Eu apontei para as próximas fileiras a minha frente com todas pessoas em pé e ela me respondeu “peça também que elas se sentem”. Juro! 
Voltando para Londres, Gil e Caetano. Cada um tinha sua canção favorita e quando a melodia saía dos pulmões de um deles, muitos se levantavam em frente as cadeiras, dançavam, cantarolavam, abraçavam-se, pulavam. Sem nenhum problema de ordem técnica ou terceiros cagando regras. E todos colocavam as goelas para fora, Gil e Caetano cantando, e a gente embaixo de um chuveiro coletivo: “não adianta nem me abandonar, porque mistérios sempre há de pintar por aí, por aí (...) pessoas até muito mais vão lhe amar, até muito mais difíceis que eu pra você”. E a identificação coletiva continuava: “Drão, o nosso amor é como um grão, uma semente de ilusão, tem que morrer para germinar, plantar em algum lugar, ressuscitar no chão”.... La-ra, La-ra, La-ra.... “quem poderá fazer aquele amor morrer, se amor é como um grão .... 
Gil ria e exclamava: “canta Londres”. Mas naquele momento, acho que ninguém se sentia na Inglaterra. Pedaços de diferentes Brasis se espalhavam pelo anfiteatro. Paulistanas vibravam com aquela deselegância discreta ao som de Sampa. Meninas baianas gritavam e aplaudiam de um jeito que só Deus deu... Algumas farpas foram trocadas. Um compatriota grita animadão— “Brasilllll, I looovveeee Yoooouuuuuuu”. Do outro lado da plateia, outro responde: “volta para lá então”. Mas sem mais coxinhadas e petralices, eles cantaram e mandaram a tristeza embora até o bis. Além das canções já programada e tocadas em outros países da turnê como Amsterdã, Caetano não poderia deixar London, London de fora na capital inglesa. 

E embora nossa ditadura tenha acabado e Caetano voltara sim para casa cheio de “histórias para contar de um mundo tão distante”, a letra nunca me pareceu tão atual. “I cross the streets without fear” (...) “A group approaches a policeman/ He seems so pleased to please them (...) Igualzinha a nossa polícia!  
Sob aplausos, Gil e Caetano deixaram o palco. Técnicos começaram a desmontar os instrumentos. Em um show europeu qualquer, todos começariam a sair. Afinal, já não roloram quatro músicas de lambuja? Mas ninguém saiu. Assovios, gritos, palmas e batuques só ficaram mais intensos. Funcionários da casa de show se entreolhavam. E como o que a gente faz de melhor é quebrar o protocolo, eles reapareceram. Caetano fez só uma palhinha de “Alegria, Alegria”, os violões já estavam todos desconectados, mas ainda assim não abriu mão do karaokê final da despedida: “sem lenço nem documento, nada nos bolsos ou nas mãos”... 

Obs1.: Fui bebericar um expresso antes do show. Um garoto brasileiro, que começara a trabalhar na casa de espetáculos exatamente naquele dia, sem saber da programação musical, contou animado sobre sua surpresa ao longo da tarde. “Vi por trás da porta, o Gil ensaiando sozinho no palco, tocando violão, concentrado. Minha chefe explicava o funcionamento aqui do bar, mas eu estava tão arrepiado que mal conseguia prestar atenção”. 

Foi isso que eu quis dizer com “a música”.


Obs.2: Como eu estava cantarolando ao escrever, alguns trechos das letras ficaram um ouco compridinhos! Sorry! 

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